I COE - I Desafio

Texto vencedor por Miranda Lopes

Estava sentado no cadeirão do escritório onde se tinha refugiado para fumar um cigarro à beira da janela aberta de par em par. O jantar tinha corrido bem, a sua mulher era a perfeita anfitriã e tinha preparado quase tudo de véspera. O possante peru assado era o rei da mesa, ainda que a abundância à sua volta não lhe ficasse atrás. O sogro tinha feito as honras e trinchado o animal com mestria. Até a sogra parecia ter controlado o habitual azedume e sorria enquanto enchia o prato de iguarias preparadas pela filha, reconhecendo que em matéria culinária ela a tinha amplamente superado.
Nos olhos dela via o orgulho decorrente duma tarefa conseguida. Com a sua luz cobria o miúdo, os pais, e chegava até ele que se esforçava por devolver o olhar nas condições que ela lhe pedia. Sem dúvida tinha sido uma mulher perfeita, dedicada, carinhosa, atenta. Não tinha nada a apontar a essa mulher que tinha deixado curso e carreira de lado para criarem juntos a família que todos esperavam dele, filho primogénito e fiel depositário duma genética feita de homens trabalhadores e honestos, tal como o pai e o avô. Nesta noite de Natal sabia o quanto lhe queria transmitir com aquele olhar de devoção extrema, aliás ela própria lhe sussurrou ao ouvido ao passar-lhe a flute de champanhe para o tradicional brinde “a nós, para sempre!”
Aproveitou um momento de distracção enquanto o miúdo se deliciava com os presentes em demasia para subir até ao escritório. Olhou em volta para a organização e limpeza irrepreensíveis, pegou nas molduras que ali estavam, dos dois no dia do casamento, os três no dia do nascimento do filho, e novamente os três nas últimas férias que tinham passado na casa perfeita da família perfeita da sua mulher.
De repente lembrou-se do António, seu melhor amigo de infância. Recordou essa outra noite de Natal em que soube que tinha sido encontrado enforcado no seu quarto, onde tinham passado a tarde deitados na cama, nus, agarrados um ao outro como duas metades do mesmo destino. Lembrou-se do seu cheiro, daqueles olhos doces e daquele sorriso de menino que lhe provocava uma comoção e um desequilíbrio tal como sentia agora. Apercebeu-se que tinha subido para o beiral da janela. Olhou para a noite feita manto de estrelas cadentes e deixou-se levar no embalo das memórias desse outro Natal perfeito.